Uma
das expressões mais populares no Nordeste do Brasil é dizer que alguém é o “Cão
do Segundo Livro”, significando que essa pessoa é monstruosamente boa ou
habilidosa em algo ou monstruosamente má e usa sua inteligência para criar
problemas para os outros.
A
expressão tem origem nos tempos em que a educação no nosso país era bem mais
precária e um dos poucos livros disponíveis para os alunos eram os livros de
leitura do professor Felisberto de Carvalho.
No
Segundo Livro de Leitura havia uma lenda árabe de fundo moralista onde o demônio
aparecia para um jovem dizendo que iria matá-lo a não ser que ele fizesse uma
escolha entre três possibilidades: matar o pai, espancar a irmã ou se entregar
ao vício da embriaguez.
O
jovem, querendo proteger seus familiares, decidiu pela terceira opção. Embriagou-se,
matou o pai e espancou a irmã.
Como
naqueles tempos a evasão escolar era muito maior que hoje, muitas das crianças
só tinham acesso ao Primeiro Livro de Leitura e nunca chegavam a ler o segundo
volume, não conhecendo assim o Cão do Segundo Livro, de cuja maldade só ouviam
falar.
O
deputado Eduardo Cunha atualmente é visto como sendo o próprio Cão do Segundo
Livro pela maior parte dos eleitores brasileiros. E não sem razão.
Acusado
de receber propinas e não declarar contas secretas na Suíça, Eduardo Cunha é o
primeiro presidente da Câmara dos Deputados denunciado pelo Ministério Público
Federal, acusado também de usar o cargo para atrapalhar as investigações e
fazer manobras contra o governo da presidente Dilma Rousseff.
Conhecedor
profundo dos meandros e mecanismos da Câmara Federal, Cunha elegeu-se
presidente da casa legislativa com 267 votos e o apoio dos que se opunham à
tentativa do Palácio do Planalto de colocar no cargo o deputado Arlindo
Chinaglia, já no início dos desentendimentos do governo com o PMDB, partido ao
qual Cunha é filiado.
Se
o Congresso Nacional é o espelho do eleitorado brasileiro, Eduardo Cunha é o
espelho da qualidade dos deputados eleitos, como foi possível ver na votação de
acolhimento do pedido de Impeachment contra a atual Presidente da República.
Dos
513 deputados, quase 150 estão sob suspeita e desses, 48 já respondem a ação
penal. Desses últimos, 40 votaram a favor do acolhimento do pedido de
Impeachment e oito votaram contra.
O
partido que tem mais investigados é o PP, seguido do PMDB, ficando o PSDB em
quarto lugar e o PT no quinto, com praticamente todos os partidos entrando
nessa triste listagem.
Como se pode ver, a corrupção brasileira não tem partido: ela é ecumênica.
No
entanto, na demonização que se está fazendo do Presidente da Câmara como se ele
fosse uma criatura do mal que quer, por pura pirraça, destruir o atual governo,
comete-se um erro ao se colocar a questão como sendo uma disputa de final de
campeonato de futebol.
A
atual situação política não é uma partida entre Dilma X Cunha, nem Sport X
Santa Cruz, Flamengo X Fluminense ou Corinthians X Palmeiras.
Isso
é desviar a atenção do foco principal, do jogo de poder entre as duas facções que
disputam o controle da caneta presidencial para atender interesses dos seus
patrocinadores.
Se
aproveitar do ardor cívico, da paixão e da ingenuidade da militância sincera
que esbraveja nos dois lados, é, sem dúvida, uma maldade digna do Cão de todos
os volumes de uma biblioteca!
Mobilizar
as pessoas com o argumento de que não se admite uma pessoa de moral
questionável dirigir a Câmara dos Deputados no processo de impedimento da
presidente é não querer ver as qualidades morais da maioria dos envolvidos, em
ambos os lados.
Cunha
dizer que as contas na Suíça não são dele porque não estão em seu nome é como
dizer que esse carro, essa casa, esse sítio ou esse sanduíche não são meus, são
de um amigo ou parente que gosta muito de mim. Uma das desculpas mais antigas e
esfarrapadas dos sonegadores em geral e de muitos políticos de ontem, hoje e
sempre.
Metaforicamente
falando, nas hierarquias das profundezas do Hades Cunha pode ter sido o Cão que
liderou uma coorte para infernizar a presidente, mas ele é apenas mais um dos
cães do inferno. Colocá-lo como o cérebro mefistofélico por trás de tudo é
simplificar demais e fazer retórica de campanha eleitoral.
O
atual processo de Impeachment é resultado de uma série de erros políticos, econômicos,
morais e sociais, agravados pela prepotência, falta de preparo intelectual e falta
de respeito pela coisa pública por parte da maioria dos envolvidos. Muitos
deles que, possivelmente, nunca passaram das páginas iniciais do Primeiro Livro
de Leitura.
De
qualquer forma, qualquer um que decida fazer pacto com o Cão, já devia saber
que ele sempre leva vantagem no capítulo final.
Eu opto pela leitura mais que silenciosa, porque qualquer inferência da minha parte não estaria à altura do texto, que por si é o bastante para qualquer explicação.
ResponderExcluirObrigada por tê-lo escrito.
Abraço, Lailson!
Obrigado, Canto da Boca. Ter você entre as pessoas que leem meu blog é um prazer. Sempre atenta e atenciosa!
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